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After Mary

Isso não é uma carta de amor.

Reencontrei esse texto por acaso, em um blog antigo meu hospedado em site proprietário, com 32 anos. Esse texto foi escrito quando eu tinha 23, sobre a eu de 16 até 18.

Resolvi trazê-lo para cá, na íntegra e sem editar nada, como forma de eternizá-lo em um lugar que eu tenha mais controle e carinho. Meu passado, por mais doloroso que seja, também merece esse cuidado.

Na mesma semana desse reencontro, ganhei de presente um livro, e na dedicatória estava escrito um recado à mão, que achei pertinente:

"Elaborar o passado pode ser uma das nossas formas de viver o presente e arrancar poesia do futuro".

E como pode.

*Aviso de conteúdo: relacionamento abusivo, agressão física e psicológica.*


Você não lembra daquela tarde de abril que te esperei por duas horas até que chegasse, e fomos ao cinema? Eu lembro.

Você não lembra como foi beijar uma garota pela primeira vez, e aquela sensação excitante de ter feito algo moralmente errado e ainda assim maravilhoso? Eu lembro.

Você não lembra como, dias antes, eu fiquei confusa e desnorteada porquê pela primeira vez eu queria muito mesmo que a minúscula possibilidade de darmos certo existisse? Eu lembro.

Você não lembra quando me apresentou pra todos seus amigos da escola, e me senti como alguém realmente importante na sua vida? Eu lembro.

Eu lembro como era a sensação de estar com você nos primeiros meses, tudo ser novidade, tudo ser bacana. Mas aí eu também lembro do que veio depois.

Você não lembra das agressões psicológicas. Do gaslighting. Das duas vezes em que arranhou meu braço em público porque não queria te mostrar um texto que havia escrito no celular. Você não lembra quando disse que eu “merecia apanhar” e queria marcar uma data pra que me batesse, por eu ter feito algo que desaprovava, quando éramos três. Você não lembra quando, ao estar junto da próxima pessoa que queria namorar, me humilhava jogando qualquer objeto na minha cara em público, tentando demonstrar o quanto me dominava — e infelizmente era verdade. Você não lembra quando brigava com sua melhor amiga, e então corria pra mim a falar maldades sobre ela, pra depois recorrer à ela e falar maldades sobre mim. Você não lembra que eu sei que você sabia que me manipulava, que gostava disso e fazia questão de dizer às outras pessoas o quanto eu era submissa, tonta. Você não lembra de uma porrada de coisas, menina.

Eu poderia falar lindas coisas sobre aquela garota que amei, a cor mutante dos cabelos, os dedos ásperos e frios que amava, o tipo de beijo que não dá pra esquecer. Mas eu já disse. Em inúmeras cartas de amor que nunca mandei, em inúmeros lugares fechados com senhas, pois tinha medo de um dia você encontrar e querer me agredir de novo. Algumas dessas umas pessoas leram, outras ficaram guardadas pra mim, e assim é melhor. Aquela garota que conheci não existe mais. Aquela garota que eu fui também não existe mais.

Mas não te odeio. Só quero distância desse passado que vira e mexe você faz retornar, tentando me atormentar. É uma pena que você não lembre de muita coisa…

No jogo da memória, eu sempre ganhei de você.