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After Mary

Meu amor é condicional.

É curioso como as inspirações podem surgir dos lugares mais inesperados. Há algumas semanas atrás, eu estava vendo um filme muito doido chamado Beau is Afraid, uma epópeia surrealista gigante de mais de 3 horas de duração, do diretor Ary Aster. Sem dar spoiler, numa cena próxima ao fim do filme, o terapeuta chega à conclusão junto do personagem principal que o amor que ele recebia de determinada pessoa era "condicional". Essa frase ficou comigo por bastante tempo, também pelo contexto de uma relação em que eu estava na época e que pouco depois chegou ao seu fim.

Eu fiquei me perguntando o que havia de tão moralmente reprovável nisso, que era a ideia que o filme queria passar. E daí como costumo fazer quando esses pensamentos não me largam, eu tento pensar o inverso: o que significa dizer que o amor deve ser, necessariamente, incondicional?

Sem muitas surpresas nesse caso eu caí na resposta óbvia de que isso tem bases cristãs bem fortes. Eu não sou nem nunca fui cristã, apesar de minha família se dizer católica, mas mal praticar de fato. Porém não precisei ir muito longe pra entender que o amor de verdade deve ser incondicional é uma falácia usada para (novamente sem surpresas) controlar o corpo de mulheres principalmente dentro da monogamia.

A obra de Silvia Federici de construção da análise do trabalho de reprodução social que as mulheres exercem dentro do capitalismo serviu para fundamentar meus pensamentos pra esse texto. Em prol do amor, mulheres trabalham jornadas triplas, tendo que cuidar das próprias carreiras, da casa, afazeres domésticos, crianças, marido, familiares adjacentes. A família nuclear é a jaula do amor incondicional, aquele para o qual as mulheres vivem e (literalmente) morrem se se negam a continuar a praticar o trabalho de manter a classe trabalhadora nascida e nutrida. Somente uma crença cultural tão exorbitantemente forte seria capaz de fazer com que essa população se mantivesse sob constante estresse e pressão a troco de praticamente nada -- um tapinha na costas e cestas de café da manhã no dia das mães, quando muito.

Mas até mesmo em contextos diferentes, como numa relação afetivo-sexual entre duas pessoas queer adultas sem filhos, morando em lares diferentes, a pressão para que o amor seja puro e forte apesar de qualquer circunstância, capaz de superar qualquer obstáculo, ainda é muito grande -- e sim, mesmo num contexto não-monogâmico.

Estar numa relação com alguém em que se percebe que temos visões muito diferentes do que um relacionamento deve ser na vida um do outro, em que os conflitos só se intensificam, e que a comunicação já ficou difícil de ser feita sem que tudo vire uma DR, também foi fundamental pra organizar meus pensamentos em relação a esse tema. De um lado, eu comunicando minhas necessidades que eram muito diferentes da dele; do outro, ele entendendo essas necessidades como afirmações de que eu já não o amava mais.

Ficou evidente pra mim que meu amor, então, é condicional. Ele está condicionado ao contexto de vida em que estou no momento, ao contexto de vida da outra pessoa, das necessidades que eu preciso expressar e saber se serão atendidas, se consigo atender às necessidades da outra pessoa, se temos visões próximas de como relações podem funcionar para nós, e de tantas outras condições. Meu amor é condicional pois é dessa forma que eu consigo me manter minimamente sã vivendo no capitalismo tardio que espera que eu dê conta de cuidar de mim mesma e de mais cinco contextos sociais diferentes sem entrar em colapso nervoso. Meu amor é condicional justamente por eu ser não-monogâmica, por entender que eu posso ter critérios específicos pra me relacionar com alguém que façam sentido pra mim e pra outra pessoa, e que se não fizerem, está tudo bem apenas me retirar, ou a outra pessoa se retirar também. Meu amor é condicional porque relacionamentos românticos não são o centro da minha vida.

O amor incondicional é uma parte do amor romântico que afeta todas as pessoas, com certeza, mas o considero ainda mais cruel com as mulheres pois faz com que seja considerado uma característica intrínseca da mulher e moralmente superior à qualquer outra ideia de amor e relacionamento que se pretenda viver. Considera que mulheres que são mães jamais se arrependerão de ter crianças, que "naturalmente" terão afeição a elas, que abdicarão de todas as esferas de suas vidas em favor de uma terceira pessoa. Essa, na verdade, foi a principal razão por eu ter escolhido não gestar nem criar crianças.

Talvez o personagem do filme estivesse com medo de ser rejeitado por alguém que amava muito, e por isso a ideia de amor condicional era tão ruim naquele contexto. Mas para mim, o medo que tenho é que eu seja "presenteada" por um amor incondicional que não me veja como eu sou, que me idealize como uma pessoa perfeita que sempre irá sacrificar seus ideais em "resposta" a esse presente, como se essa fosse a única forma de demonstrar e "provar" o amor.

Mas na realidade, o que eu quero provar do amor é só o sabor do momento em que estiver deliciosamente se dissolvendo na minha boca. A condição para que continue na minha vida é que seja doce, suave, quente -- e ainda assim esteja aqui porque todas as partes envolvidas assim o querem, e não por qualquer determinismo biológico ou social.